sábado, 19 de fevereiro de 2011

Poema de sete faces


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. 

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos. 

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada. 

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode, 

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco. 

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração. 

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
 
 ANDRADE, Carlos Drummond. In: Alguma poesia (1930).


Foi esse o primeiro poema que eu lembro de ter lido na vida, por volta dos oito anos de idade. Provavelmente, muito pouco eu entendi do que se espera que um leitor compreenda quando lê tais versos. Mas eu recordo perfeitamente que fiquei encantada, sobretudo com o trecho “Mundo mundo vasto mundo, /se eu me chamasse Raimundo /seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu coração”, que eu sequer sabia o significado.

Hoje, ao recordar de um tempo passado e vislumbrar um possível tempo futuro, fiquei pensando que, talvez, tenha sido a busca por compreender, em alguma medida, “o vasto mundo” drummondiano, que tanto me fascinou na infância, o que me fez trilhar por esses caminhos que me trouxeram até aqui e, quiçá, me levem um pouco além.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Merci, bien-aimé

O que seria de mim sem as suas mãos? O que seria de mim sem os seus pés? O que seria de mim sem o seu riso doido que viola, obscenamente, o meu calar? O que seria de mim sem os seus vesgos olhos que acham belo o meu desespero? O que seria de mim sem as canções de Blunt que ontem você me trouxe da sua outra morada? O que seria de mim sem você, amor, nesses dias de claustro, lavor intenso e tantos, tantos, tantos abismos?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Um livro de horas


Isto é tudo que tenho para oferecer.
Isto, e meu coração também.
Isto, meu coração, o campo, e além,
Toda a campina selvagem.
Trate de contar – se eu esquecer,
A soma alguém deve saber –
Isto, e meu coração, e as abelhas todas
Que vivem na folhagem.

Emily Dickinson


Há dias em que preciso reler certos poemas, recitá-los em voz alta, como se fossem orações. Houve um tempo, na minha adolescência, em que eu orava Tabacaria, de Álvaro de Campos, todas as manhãs, antes mesmo do café. Em outro momento foi Fidelidade, de Li Po, o meu poema prece. Poesia como oração, para as horas de agonia, de tristeza funda, mas também para as horas de beleza incomensurável e de gratidão.
Descobri recentemente que a escritora Angela-Lago também recita poemas como orações. E foi exatamente por isso que ela – inspirada no gênero medieval que continha orações e salmos para as diversas horas do dia – organizou uma pequena e belíssima seleção de poemas de Emily Dickinson, chamada Um livro de horas (Scipione, 2007), com 24 poemas-oração para os vários momentos do dia. Foi desse livro que retirei o poema acima.


.....


Fique aqui registrado que, quando eu morrer, desejo que se despeçam de mim orando poesia e, caso eu seja merecedora, que Deus permita que caia uma chuva bem fininha. Bem fininha, de manhã, e que me levem pra casa, a minha casa embaixo da mangueira.