sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Poema para os olhos de minha mãe


minha avó materna não deixou fotografia
morreu de parto
numa manhã de inverno
aos trinta e dois anos de idade
em sua própria cama
deixando seis órfãos, um marido devastado
e uma casa para sempre vazia

dizem que era bela
com seus cabelos negros
e o olhar azul profundo
a espiar o tempo

minha avó materna era judia
como a sua mãe, a mãe de sua mãe
a mãe da mãe de sua mãe
e a sua filha
como a filha de sua filha
e a filha da filha de sua filha

dizem que era forte
com seu corpo esguio
atravessando os vales
a desafiar a sina

minha avó materna não nos legou seu sobrenome hebreu
pois o perdera antes mesmo de nascer
também jamais lhe escutaram pronunciar a língua

nenhuma carta, nenhuma joia, nenhum caderno de receitas
nenhuma velha Torá no fundo falso de um baú
nenhuma fotografia
somente sua ausência
seu sangue antigo em nossas veias
e uma dor quieta
e infinita
 nos olhos ternos de minha mãe

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Mobília

Ângela Vilma

Registro interno de solidão:
tenho 32 cadeiras.
Receberei um dia 32 visitas?
32 pessoas um dia aqui se sentarão?
Há de diversas formas: de balanço, de varanda, de jantar. Cadeira artesanal, espreguiçadeira, banquinhos.
Há uma parecida com aquelas da sala de jantar de lá de casa: aquelas que beliscavam nossas bundas.
Se faço coleção?
Se é uma estranha mania?
Registro interno de solidão:
Tenho quatro grandes mesas.
E dois bules de café.
Tenho muitos talheres.
Uma casa enorme para ouvi-los tilintar.
Mãe comia de colher, às escondidas de pai.
E de colher me ensinou a comer.
Pai era civilizado: sabia andar em Salvador,
sabia escrever bem, lia Dona Flor,
usava roupa de casimira e paletó.
Mãe não: suas roupas eram sempre estampadas
costuradas por suas mãos
com cheiro de cebola.
Registro interno de solidão:
Tenho um guarda-roupa antigo.
Ele contém dez vestidos estampados.
Envelheço como mãe, e nela me misturo
aos seus traços entalhados,
às rugas mais fundas, mais velhas,
e juntas nos parecemos, engraçado,
à nossa antiga geladeira.


Publico acima uma poesia da minha amiga Ângela Vilma. Poema belíssimo que toca fundo a minha alma. Espero vê-lo em breve publicado em livro para que muitos também possam ler e se emocionar; para que muitos também tenham o privilégio que eu tive - numa tarde de inverno em sua linda casa, quando ela me mostrou os seus inéditos - de saborear a sua poesia.