segunda-feira, 30 de julho de 2012

Coivara da memória




Passei os últimos dias morando no romance Coivara da memória, do sergipano Francisco J. C. Dantas. Sim, morando, pois me senti em casa; encontrei em seus personagens muitos dos homens e das mulheres com as quais convivi na infância; reconheci nas suas palavras a mesma língua falada na casa da minha mãe e passeei pelas suas paisagens como se delas fizesse parte. 

Li sovinamente o livro, economizando páginas, aproveitando cada parágrafo, cada imagem, cada palavra, das inúmeras palavras belamente esculpidas por esse escritor que, embora seja admirado por nomes como Carlos Barbosa, Florisvaldo Matos, Leyla Perrone Moisés, Raduan Nassar, Benedito Nunes, José Paulo Paes, Alfredo Bosi, entre outros, é pouquíssimo lido no Brasil, levando-se em conta a força da sua literatura. 

Não vou aqui resumir a obra. Mas transcrevo abaixo um pequeno trecho do romance que encanta pelo uso exato de palavras que se dobram, desdobram e redobram numa profusão de imagens inesquecíveis.

***

“No intervalo do momentinho em que ela arrepanhou a saia para pular o fio de água que corria sob as biqueiras da cancela do engenho, nesse minúsculo relâmpago de tempo, meus olhos bateram nela e sua imagem se petrificou nestas retinas num ímpeto tão instantâneo como a luz que bate e se deixa aprisionar numa chapa fotográfica, uma luz que chega para marcar e ficar. Mal e mal assim a vi e me dei todo, estonteado como nunca no descompasso do abalo. Numa pasmaceira medonha e de miolo meio mole fiquei de longe com o olho duro pregado nela, apreciando a doçurinha que se abria toda catita, aveludando lepidamente aquela manhã.”


DANTAS, Francisco J. C. Coivara da memória. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. p. 212.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Adonis [poemas]


Amor

Me amam o caminho, a casa
e na casa uma jarra vermelha
amada pela água,

me amam o vizinho
o campo, a debulha, o fogo,

me amam braços que trabalham
contentes do mundo descontentes
e os arranhões acumulados no peito
exaurido do meu irmão atrás
das espigas, da estação, como rubis
mais rubros que o sangue.

Nasci e nasceu comigo o deus do amor
_ que fará o amor quando eu me for?

ADONIS. Poemas. Org. e trad. Michel Sleiman. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 41.


Uma das coisas que me deixa mais feliz nesta vida é ir à livraria e encontrar um belo livro de poemas. Gosto de contos, de romances, de biografias, de livros de ensaios e de filosofia... No entanto, a poesia é a minha casa sobre a mangueira perdida, o silencio que me abriga nos vales da minha terra distante, a lâmina fria lacerando a pele.

O poema acima retirei de um livro que encontraram para mim, do poeta sírio Adonis (Ali Ahmad Said Esber). Desde ontem, saboreio lentamente o presente do amado, para melhor aproveitar a força dos versos deste autor que adotou para si o nome do deus grego de origem fenícia, símbolo do mistério da natureza.

E sigo assim, na leitura deste livro e na vida: torta, encarnada, perplexa.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Anotação

há sempre uma lâmina fina atravessando o peito
há sempre os meus passos vesgos
e uma longa estrada